quarta-feira, 9 de junho de 2010

Para ouvir o silêncio

Eu tinha 8 anos quando vi minha mãe chegando na escola. Era uma escola particular, pequena, de bairro, de subúrbio. Tinha um pátio generoso na entrada, com mangueiras, goiabeiras, jabuticabeiras. Um chão de terra batida. Minha mãe nunca ia à escola. Quando a vi, pensei logo que poderia ser algum problema. Comigo, claro.

Aos 8 anos já não era uma aluna exemplar. Naqueles idos finais da década de 70, tínhamos ditado todo o dia, nos obrigavam a decorar tudo e aprendíamos que “Pedro Álvares” descobrira o Brasil. Na Páscoa, pintavam nossa cara de coelhinho. E tinha a tal da “disciplina”. A escola tinha como marketing o “controle dos alunos”. E, pra direção da escola, eu era “meio” descontrolada.

Minha mãe foi chamada porque achavam que eu tinha dificuldades em entender os exercícios, problemas de aprendizagem, sem falar na minha letra, que era horrível.

Quando mamãe saiu da reunião eu a esperava na porta da diretoria. Disse que ia ao banheiro e corri até lá, contrariando mais uma vez as regras da escola. Minha mãe cruzou o olhar com o meu e senti imediatamente uma dor latejante e aguda. Indescritível. A mesma sensação que vim sentir bem mais tarde, quando já uma jovem, descobri pelos olhos da primeira paixão que eu não era única no coração dele.

Ao chegar em casa, ao invés de bronca, meu pai me chamou num canto, pediu que eu fechasse os olhos e me apresentou uma caixinha. Falou pra eu colocar a mão dentro. Não podia apertar. Segui as instruções e era algo vivo, delicado, que apertou meus dedos ansiosos pelo toque de reconhecimento. “Abre os olhos!” Era um pintinho. O mais lindo pintinho que eu já tinha visto. Eu sempre quis ter um animal de estimação, mas, como morávamos num apartamento de 2 quartos e 60 metros quadrados (eu dividia o meu quarto com meus 2 irmãos), não tinha argumento que convencesse meus pais. Ainda mais porque mudávamos muito, não podíamos fazer barulho, meu pai sumia vez por outra e minha mãe sempre dizia que em pouco tempo iríamos pra outro país. O que me assustava e ao mesmo tempo instigava.

Cuidei do pintinho. Com delicadeza mas também com um máximo de liberdade dentro das limitações do mínimo onde vivíamos. Quando eu tinha certeza que ninguém ia aparecer no corredor, eu o soltava ali. Era um corredor enorme, várias portas, muitos apartamentos por andar. Batizei o pinto de José. Diziam que era uma galinha, mas eu estava certa. José cresceu e virou um galinho! E dos bons! Tomava cerveja com meu pai, comia pipoca com a gente, e dormia no varão da cortina do box do banheiro. Os desavisados, especialmente os amigos assustados de meu pai, tomavam susto quando entravam no banheiro. Era só abaixar as calças que José cantava.

E José cresceu mais. Passou a cantar todas as madrugadas no banheiro. Minha mãe não o suportava. Reclamava do cheiro, da cantoria, da sujeira. Meu irmãos nem ligavam. Meu pai já não estava mais por lá. Era só eu quem defendia José.

Um dia cheguei da escola e o porteiro sorriu pra mim diferente. Em casa descobri que José se fora. Mamãe o doou pro porteiro, que o levou contente pra sua casinha num morro perto do nosso bairro. Chorei quieta, porque nunca gostei de mostrar que eu também tenho esse meu lado incontrolado.
Dias se passaram. Eu continuava triste. Minha mãe se chegou. Disse que José seria mais feliz no morro, junto a outros tantos galos, cantarolando pelas madrugadas, já como parte de uma paisagem, sem barulho, sem reclamação, sem banheiro, sem edifício e todos os seus vizinhos chatos. Eu disse “não era barulho, eu gostava de ouvir a música dele”. Foi quando minha mãe disse que eu o poderia escutar. Era só abrir os ouvidos, prestar atenção e ouvir. O morro era logo ali. E mesmo longe, onde quer que eu fosse,haveria um José pra cantar por perto.

E a partir daí tudo mudou na minha vida. Passei a ouvir no silêncio das madrugadas o cantarolar de José, e por todas as casas que eu vivi, cidades distantes daqui que morei, havia sempre uma música rasgando o silêncio pra mim.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Mulheres da Terra


Ainda é possível acessar os dois episódios de Mulheres da Terra, documentário filmado no oeste de Santa Catarina, com mulheres agricultoras do Movimento de Mulheres Camponesas. Entre outros objetivos, o Movimento trabalha pelo resgate das sementes crioulas.

http://mediacenter.clicrbs.com.br/templates/ResultadoBusca.aspx?uf=2&channel=46&tipo=tag&texto=mulheres_da_terra

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

2010, um novo ano

Em poucas horas um ano novo começaria. "Co-me-ça-ria"...Claudia gostava das possibilidades. Gostava de desenhar seu futuro, imaginar que, de uma hora pra outra, podia mudar o rumo de muita coisa. De outras nem tanto.

Por isso, no último dia do ano resolveu que largaria o emprego de garçonete no café. Estava ali há 1 ano, o chefe gostava dela, os colegas eram médio-simpáticos..ela os chamava assim porque, naquela cidade onde vivia, não era comum esbarrar com gente absolutamente simpática, 100% legal ou minimamente que demonstrasse o sentimento de felicidade. Lhe irritava o jeito velado de opinar. Não comentavam sobre todos os assuntos, tinham medo. Talvez de dizer algo chocante, algo que provocasse polêmica, ou que Claudia discordasse.

E foi assim que Claudia largou o emprego.

Também entregou a casa. Vivia em uma casa de madeira, dessas que um dia foi típica na região, mas que gradativamente foi substituída por mini-prédios de alvenaria grosseira. O bairro foi se descarecterizando, perdendo qualquer identidade. E Claudia também. Gostava do cheiro de maresia , gostava de acordar a noite com os cães do vizinho latindo, da sinfonia matinal dos galos, das brigas de casal da casa em frente, da gata no cio berrando como uma criança em seu telhado. Gostava de coisas que ninguém gostava. Era atraída por aquilo que seus ditos "amigos" consideravam insuportável.

E foi assim que Claudia se livrou do aluguel e da casinha verde e branca, de madeira.

O que faltava para o novo ano?

Claudia pensou.

Ivan era um amigo mais que amigo. Passavam dias de folga juntos. Bebiam vinho, chimarrão, sovavam a massa do pão. Liam livros juntos, cada um uma página, deitados nús na cama, em voz alta. A companhia dele fazia bem a Claudia.
Mas incomodava a Ivan o gosto de Claudia pelo cheiro de marezia, pelos latidos, miados, galos, brigas alheias, e o desgosto de Claudia por alguns de seus amigos.
Claudia dormia vendo cinema iraniano, não entendia bergman, não via revolução no cinema novo. Nunca foi ao Forum Social Mundial, pois era pessimista - pra Claudia, um mundo melhor não era possível.

E foi assim que Claudia pediu a Ivan que não a procurasse mais. Não chorou. E ele também - sequer a olhou nos olhos. Perguntou se tinha alguma outra pessoa. Claudia não entendeu.

Claudia foi até a rodoviária e lá resolveu seu destino. Entrou no ônibus e seguiu. Passou a virada do ano em uma parada de estrada, tomando um café-com-leite açucarado e morno. 2010, agora, começava.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

baixo ventre

tinha 23 anos mas parecia menos. conhecia eduardo fazia quase 1 ano. foram ficando, ficando. ao contrário dos outros namorados, com edu acontecia algo novo e misterioso. inexplicável. o tempo a ajudava a gostar mais. a intimidade crescente tornava a relação, a cada dia, mais excitante. sem perceber, moravam juntos. sem perceber, mudaram o eixo da relação. sem perceberam, passaram a se chamar diferente - ela, a mulher, ele, o marido.

os anos foram passando, sem que o casal contasse. não contaram as crises de grana, nem tão pouco as crises de amor. os filhos vieram em três. escadinha. eles se dividiam na educação, nos cuidados, no tempo. distribuíam o amor de forma quase igual, entre os três. mas também sem se dar conta, não trocaram esse amor mais entre eles.

mais alguns anos e estava ela, se sentindo só. um vazio grande, um aperto inesperado. achava que aquele brilho, aquele frio no ventre e aquela súbita boca seca seriam sensações não mais vividas.

numa manhã, acordou novamente só.
não se conformou.

hoje ela vaga por aí e parece que o brilho voltou. a boca seca às vezes. falta só o ventre. mas o frio vai chegar na nova estação.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

o calor da carne

Tudo parecia sob controle. Era divertido. Discutir, questionar, beber, tragar. De espírito livre, relacionava-se. Era prazeroso. No calor da praia, a água quente daquele mar ajudava a aquecer as idéias, enquanto se esforçava para esfriar a pele mergulhando na cerveja gelada, na pinga no gelo. O tempo já não sentia mais. Queria congelar aqueles momentos, esquecer que os anos passam e que levam junto a única qualidade que se orgulhava em ter: o calor em sua carne.

Mas sem se dar conta, não era mais a mesma. Contentava-se em saltar sobre a cama de molas ou vagar sozinha pelos becos, buscando sabe lá o que.

E pensava: quão perigosa pode ser a vida!

saudade.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

somente só

Se achava sozinha. Pela primeira vez, sozinha. Sozinha tomava o café, aindo cedo da manhã. Sozinha dirigia quilômetros. Sozinha mergulhava em suas escritas. Tão sozinha era, tão sozinha estava, que passou a se acostumar com o "sozinha".
Se sentia feliz. Sozinha, se completava.
Foram longos e férteis momentos que o estar sozinha lhe proporcionaram.
Ao deixar de estar sozinho, não mais se encontrou. A cada dia foi desejando mais aquele passado de isolamente. Até que teve coragem.
Em sua solidão ela vive rodeada.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

armando carreirão - memória em movimento


Uma homenagem ao agitador cultural de Santa Catarina - Armando Carreirão - é o objetivo do documentário que vai ao ar sábado próximo, dia 22 de agosto, antes do jornal do almoço, no programa SC em Cena, da RBS TV.
Ele e os integrantes do Grupo SUl, queriam "sacudir" uma Florianópolis adormecida...A entrevista de Carreirão, falecido em 2007, concedida a sua neta, Luiza, é o ponto de partida para a criação desse trabalho que pra mim foi instigante.
Que venham mais Carreirões!